O brincar e a cidade

o brincar é a possibilidade de reinvenção de realidades: refazendo a si mesmo, a criança também refaz e ressignifica o mundo a sua volta

Camila Sawaia

Pedagoga pelo Instituto Singularidades e Arquiteta e Urbanista pela USP, pesquisa a relação do brincar com a cidade. É professora de educação infantil no espaço Puri e foi integrante do Instituto A Cidade Precisa de Você.

Publicado em 04 de outubro de 2024
por Camila Sawaia

Entendo o brincar como uma experiência que possibilita conexão com a singularidade, conexão com o mundo, com a cultura, com o repertório já existente. Como a perspectiva de reconhecer-se parte. É a criação dos laços que se estabelecem entre o eu e o seu entorno. É a possibilidade de lançar suas marcas naquilo que já existe, assim como também ser marcado, em um constante ir e vir. É poder lançar ao mundo outros símbolos,  rituais, outras dimensões. Brincar é a possibilidade de reinvenção de realidades.

Essa exploração e reinvenção da realidade é uma condição permanente na infância. Meninas e meninos exploram o espaço, construindo continuamente lugares (imaginários e reais) dentro do lugar onde estão. Ao brincar, a criança representa ações observadas no cotidiano, não apenas reproduzindo aquilo que viu, viveu ou imaginou. Ela as recria, dá seus próprios significados, imprime seu ponto de vista e as coloca sob a perspectiva da linguagem simbólica. 

Então, produz algo novo a partir de sua experiência. É no fazer de novo e de novo, no refazer, muito presente nas brincadeiras infantis, que as crianças vão retomando suas vivências e ressignificando-as. Assim, ao brincar, a criança vive uma experiência criativa na relação com o mundo. É por meio da capacidade de dialogar, trocar, sentir e entender o mundo, agindo sobre e com ele, que o brincar possibilita o desenvolvimento de diversas competências. 

Nesse processo, a criança enquanto indivíduo tem a possibilidade de transformar o desconhecido em conhecido, o inexplicável em explicável e reforçar ou alterar o mundo. O brincar permite alcançar lugares não ocupados, sonhos imaginados, verdades desconhecidas, recriar memórias vividas.

Brincando com a realidade, a criança pode construir um universo particular, ressignificar o cotidiano e adicionar maior sensibilidade àquilo que é vivido no mundo material. No brincar, a criança pode construir mundos dentro do mundo, de maneira que esses novos locais a ajudem a formar um jeito próprio de perceber e interpretar a realidade, bem como sua forma de agir sobre ela. 

Podemos entender a brincadeira, conforme coloca Winnicott (1975), como um espaço de experimentação no qual influem e são influídos a realidade interna e a externa.  Ao brincar, a criança elabora seu mundo interno através da realidade externa, vivendo o interjogo entre as duas realidades. A criança pode relacionar, confrontar, comparar, manipular e ver questões internas na realidade externa, percebendo seu contexto e, assim, entendendo-se no mundo. É no universo do imaginar brincante que a criança coloca-se no mundo, buscando relacionar-se com ele, e, para além disso, ressignificando essa relação.

Portanto, a brincadeira é uma forma de se expressar, de interagir com o mundo, de observá-lo, explorá-lo e transformá-lo. É a possibilidade de recortar um pedacinho do mundo e manipulá-lo, podendo chegar onde quiser e desejar. Dessa forma, a criança brinca como forma de criar e apropriar-se do mundo, do outro e de si mesma.

Ela não apenas recebe o mundo, mas coloca a potência da imaginação a favor do redimensionamento do mundo, aprofundando os espaços, criando, inventando imagens e adicionando poesia. “Isso porque a imaginação resulta do embate entre o homem e o mundo, uma no sentido de explicá-lo, outra na direção de sentir as resistências da matéria e optar criando outro mundo” (GOES, 2011, p. 55 apud PIORSKI, 2016, p. 61).

Interferindo e agindo no mundo real, nos espaços e nos objetos as crianças vão atribuindo-lhes valor próprio e subjetivo e, assim, vão reconhecendo-se naquilo que gostam ou não, que as afetam ou não, vão construindo-se de maneira livre, espontânea, autônoma e criativa. O brincar, entre tantas outras facetas, pode apresentar-se como uma experiência estética, de criação de possibilidades desejáveis, utópicas e que podem ser exploradas como forma de questionar o mundo real e transformá-lo ou como proposta de construção de uma realidade própria. É uma maneira de fincar-se no mundo e também firmar o mundo em si. 

Portanto, entender o brincar é também entender sua relação com o contexto no qual a criança está inserida, que diz de um diálogo simbólico com o mundo, tanto em um sentido da essência do lúdico quanto em um que dialoga com o eu. As crianças experimentam o mundo ao mesmo tempo que ele repercute nelas, tingido de imaginação e carregado de questões sociais, costumes e significados.

O brincar é um mundo em miniatura da grande imaginação, o qual vem sempre carregado de representações culturais e símbolos. É um mundo em si, e, ao mesmo tempo, permite construir o mundo-fora, o mundo-sociedade, e o mundo-eu.

Portanto, o contato com o mundo não só constrói a brincadeira como a enriquece, trazendo a cultura local, os costumes, as ideias. É partindo do que já existe que a criança ressignifica, entende, incorpora e pode, então, criar o novo. O brincar no mundo real é potencializado por trazer toda sua complexidade, amplitude, diversidade. 

A natureza da cidade, então, é potente para o estar e brincar da criança, como um despertar para sua curiosidade, investigação e descobertas. Como uma concretude real de significados, símbolos e possibilidades. Proporciona o desenvolvimento da vida pública e o contato com as construções políticas, sociais e culturais que se dão nos espaços urbanos e na sociedade em que elas estão inseridas, estabelecendo, assim, relações e aprendizados que vão somando-se.

Portanto, gosto de pensar o brincar e sua relação com a cidade em uma outra dimensão, que não se limita a brincar no espaço urbano, mas também com o espaço urbano. Dimensão essa que coloca a infância frente ao incerto, à conquista de espaços para a aventura, à arte de conversar e trocar com os outros. Frente à diversidade, ao concreto, ao múltiplo. Formas de prova e ensaio, de possíveis maneiras de produzir o descobrimento e o encontro, de iniciar o exercício de estar em comum e, portanto, de praticar e gerar o urbano. 

A cidade é espaço de brincadeira porque é espaço de criação, de experiência, de imaginação. Reafirmar esses aspectos como algo que constitui a cidade é relembrar da cidade como lugar de encontro, de troca, de estímulo, de acolhimento para a expressão e para as múltiplas possibilidades.

Portanto, é nesse brincar na e com a realidade que a criança se refaz e refaz o mundo. Brincando, ela funda territórios em deslocamentos, se delicia com o movimento, com outras perspectivas de si, com outras perspectivas do mundo. Entende que a imaginação é um mundo e é, ao mesmo tempo, a possibilidade de sonhá-lo de novo.

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